24 de junho de 2009

RACISMO NO BRASIL... NA PRÁTICA.

Lucrecia Paco


Fazia tempo que eu não sentia tanta vergonha. Terminava a entrevista com a bela Lucrécia Paco, a maior atriz moçambicana, no início da tarde desta sexta-feira, 19/6, quando fiz aquela pergunta clássica, que sempre parece obrigatória quando entrevistamos algum negro no Brasil ou fora dele. “Você já sofreu discriminação por ser negra?”. Eu imaginava que sim. Afinal, Lucrécia nasceu antes da independência de Moçambique e viaja com suas peças teatrais pelo mundo inteiro. Eu só não imaginava a resposta: “Sim. Ontem”.

Lucrécia falou com ênfase. E com dor. “Aqui?”, eu perguntei, num tom mais alto que o habitual. “Sim, no Shopping Paulista, quando estava na fila da casa de câmbio trocando meus últimos dólares”, contou. “Como assim?”, perguntei, sentindo meu rosto ficar vermelho.
Ela estava na fila da casa de câmbio, quando a mulher da frente, branca, loira, se virou para ela: “Ai, minha bolsa”, apertando a bolsa contra o corpo. Lucrécia levou um susto. Ela estava longe, pensando na timbila, um instrumento tradicional moçambicano, semelhante a um xilofone, que a acompanha na peça que estreará nesta sexta-feira e ainda não havia chegado a São Paulo. Imaginou que havia encostado, sem querer, na bolsa da mulher. “Desculpa, eu nem percebi”, disse.

A mulher tornou-se ainda mais agressiva. “Ah, agora diz que tocou sem querer?”, ironizou. “Pois eu vou chamar os seguranças, vou chamar a polícia de imigração.” Lucrécia conta que se sentiu muito humilhada, que parecia que a estavam despindo diante de todos. Mas reagiu. “Pois a senhora saiba que eu não sou imigrante. Nem quero ser. E saiba também que os brasileiros estão chegando aos milhares para trabalhar nas obras de Moçambique e nós os recebemos de braços abertos.”

A mulher continuou resmungando. Um segurança apareceu na porta. Lucrécia trocou seus dólares e foi embora. Mal, muito mal. Seus colegas moçambicanos, que a esperavam do lado de fora, disseram que era para esquecer. Nenhum deles sabia que no Brasil o racismo é crime inafiançável. Como poderiam?
Lucrécia não consegue esquecer. “Não pude dormir à noite, fiquei muito mal”, diz. “Comecei a ficar paranoica, a ver sinais de discriminação no restaurante, em todo o lugar que ia. E eu não quero isso pra mim.” Em seus 39 anos de vida dura, num país que foi colônia portuguesa até 1975 e, depois, devastado por 20 anos de guerra civil, Lucrécia nunca tinha passado por nada assim. “Eu nunca fui discriminada dessa maneira”, diz. “Dá uma dor na gente. ”

Ela veio ao Brasil a convite do Itaú Cultural, que realiza até 26 de junho, em São Paulo, o Antídoto – Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito. Lucrécia apresentará de hoje a domingo (19 a 22/6), sempre às 20h, a peça Mulher Asfalto. Nela, interpreta uma prostituta que, diante de seu corpo violado de todas as formas, só tem a palavra para se manter viva.

Lucrécia e o autor do texto, Alain-Kamal Martial, estavam em Madagáscar, em 2005, quando assistiram, impotentes, uma prostituta ser brutalmente espancada por um policial nas ruas da capital, Antananarivo. A mulher caía no chão e se levantava. Caía de novo e mais uma vez se levantava. Caía e se levantava sem deixar de falar. Isso se repetiu até que nem mesmo eles puderam continuar assistindo. “Era a palavra que a fazia levantar”, diz Lucrécia. “Sua voz a manteve viva.” Foi assim que surgiu o texto, como uma forma de romper a impotência e levar aquela voz simbólica para os palcos do mundo.

Mais tarde, em 2007, Lucrécia montou o atual espetáculo quando uma quadrilha de traficantes de meninas foi desbaratada em Moçambique. Eles sequestravam crianças e as levavam à África do Sul. Uma menina morreu depois de ser violada de todas as maneiras com uma chave de fenda. Lucrécia sentiu-se novamente confrontada. E montou o Mulher Asfalto.

Não poderia imaginar que também ela se sentiria violada e impotente, quase sem voz, diante da cliente de um shopping em um outro continente, na cidade mais rica e moderna do Brasil. Nesta manhã de sexta-feira, Lucrécia estava abatida, esquecendo palavras. Trocou o horário da entrevista, depois errou o local. Lucrécia não está bem. E vai precisar de toda a sua voz – e de todas as palavras – para encarnar sua personagem nesta noite de estréia.

“Fiquei pensando”, me disse. “Será que então é verdade? Que no Brasil é difícil ser negro? Que a vida é muito dura para um preto no Brasil?” Eu fiquei muda. A vergonha arrancou a minha voz.



Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI78162-15228,00-ENTAO+E+VERDADE+NO+BRASIL+E+DURO+SER+NEGRO.html

2 comentários:

Luciana disse...

É duro ser negro sim, a ausência de educação é um mal intermitente dos brasileiros, o preconceito é assunto antiquadamente atual, mas eu pessoalmente continuo a repetir, que devemos ser mais duros quanto o assunto, ter reações seguras e inteligentes, e tem que ser na hora! Fico muito triste quando tenho conhecimento destes comportamentos com um irmão! Principalmente neste caso específico de uma irmã que faz parte de nossa história! Creio que a falta de informação quanto ao assunto também nos inibe como um todo, na verdade temos tantos históricos de covardias que a inércia se torna um meio de defesa, e infelizmente, a efetividade da segurança pública para com este comportamento, é brando(ficando claro que não sou a favor de leis severas, mas eficazes, já que existem e se justicam hipocritamente). Trata-se do ato em questão, de uma injúria qualificada, pesquise na net, é o art. 140 § 3º do Código Penal, e portanto acaba por deixar brechas, pois o procedimento na Delegacia é ouvir o ofensor e liberá-los posteriormente, por conta da pena que é de reclusão de 1 a 3 anos e multa. Ai nos perguntemos por que será que existe esta brecha? Será que nossos legisladores também colaboram para a existencia e propagação do racismo? Deixo minha provocação nas cabeças de nossos guerreiros. Muita paz para todos, e que possamos nos unirmos pacificamente em resposta ao racismo e ao preconceito.

Luciana Mauricio dos Santos.

Lumauricio disse...

É duro ser negro sim, a ausência de educação é um mal intermitente dos brasileiros, o preconceito é assunto antiquadamente atual, mas eu pessoalmente continuo a repetir, que devemos ser mais duros quanto o assunto, ter reações seguras e inteligentes, e tem que ser na hora! Fico muito triste quando tenho conhecimento destes comportamentos com um irmão! Principalmente neste caso específico de uma irmã que faz parte de nossa história! Creio que a falta de informação quanto ao assunto também nos inibe como um todo, na verdade temos tantos históricos de covardias que a inércia se torna um meio de defesa, e infelizmente, a efetividade da segurança pública para com este comportamento, é brando(ficando claro que não sou a favor de leis severas, mas eficazes, já que existem e se justicam hipocritamente). Trata-se do ato em questão, de uma injúria qualificada, pesquise na net, é o art. 140 § 3º do Código Penal, e portanto acaba por deixar brechas, pois o procedimento na Delegacia é ouvir o ofensor e liberá-los posteriormente, por conta da pena que é de reclusão de 1 a 3 anos e multa. Ai nos perguntemos por que será que existe esta brecha? Será que nossos legisladores também colaboram para a existencia e propagação do racismo? Deixo minha provocação nas cabeças de nossos guerreiros. Muita paz para todos, e que possamos nos unirmos pacificamente em resposta ao racismo e ao preconceito.
Luciana